Primeira pessoa ou terceira pessoa, qual escolher?
Uma das escolhas mais significativas que um escritor precisa fazer antes de dar corpo a sua narrativa é decidir em qual voz contar a história: primeira pessoa ou terceira pessoa. À primeira vista, parece uma decisão simples, quase técnica, mas na prática ela carrega implicações profundas para a construção da obra, para a forma como o leitor irá se conectar com os personagens e até mesmo para a maneira como a trama se desenvolverá. Escolher a perspectiva certa não é apenas uma questão de estilo, mas um elemento que molda a alma do texto.
A primeira pessoa, aquela em que o narrador fala diretamente ao leitor utilizando o “eu”, é talvez a mais íntima das perspectivas. Ela aproxima, cria uma relação direta entre quem conta e quem lê. Ao mergulhar na mente do narrador, o leitor enxerga o mundo através de seus olhos, sente o peso de suas escolhas e vive suas contradições. Há uma honestidade particular nessa forma de contar, ainda que seja, muitas vezes, uma honestidade limitada. Isso porque a primeira pessoa não garante verdade, mas sim uma versão da verdade. O narrador pode mentir, se enganar, esconder detalhes ou simplesmente não compreender tudo o que acontece ao seu redor. E é exatamente nesse espaço entre o que é contado e o que se deixa de contar que reside a riqueza desse ponto de vista.
No entanto, a primeira pessoa também impõe desafios. Ela restringe o olhar àquele narrador específico. Se a trama pede uma visão mais ampla, que abarque diferentes cenários ou que explore pensamentos e emoções de diversos personagens, essa escolha pode limitar. É claro que existem recursos para contornar isso — múltiplos narradores em primeira pessoa, cartas, diários, registros que ampliem o escopo — mas ainda assim, a experiência do leitor será filtrada por vozes individuais, e isso pode ser tanto uma força quanto uma limitação.
Já a terceira pessoa traz outra forma de olhar o mundo. Nela, o narrador se distancia, assumindo uma posição que pode ser mais observadora, quase invisível, ou extremamente consciente, opinativa e onisciente. A terceira pessoa abre o leque de possibilidades: permite saltar entre diferentes personagens, revelar acontecimentos que nenhum deles poderia presenciar, criar contrastes entre o que um personagem pensa e o que de fato acontece. Essa liberdade pode ser tentadora, e não é à toa que tantos romances clássicos e modernos se valem dela. O leitor, nesse caso, acompanha a história como se estivesse sentado em um teatro, vendo todos os personagens se moverem no palco, mas ao mesmo tempo podendo ouvir, se o autor desejar, os sussurros mais íntimos de suas mentes.
Ainda assim, essa perspectiva não é isenta de riscos. Se o escritor não domina bem o equilíbrio entre proximidade e distância, a narrativa pode perder força. Saltar de um personagem para outro sem critério pode desorientar o leitor, diluir a tensão ou até esvaziar a emoção. A terceira pessoa exige uma mão cuidadosa, capaz de decidir o quanto mostrar e o quanto calar. Afinal, narrar tudo também é uma forma de enfraquecer a surpresa; manter um certo mistério é parte essencial do contar histórias.
A escolha, portanto, não se resume a perguntar “qual é melhor?”, mas “qual serve melhor à história que quero contar?”. Há enredos que clamam por uma voz pessoal, por um testemunho visceral, por aquela sensação de que estamos lendo um diário ou confidência. Outras histórias precisam de uma visão mais ampla, de um narrador que consiga construir o mosaico de eventos e personagens de forma coesa. A própria natureza dos protagonistas pode sugerir uma ou outra escolha: um personagem introspectivo, cheio de dilemas internos, talvez ganhe força em primeira pessoa, enquanto uma trama com muitos conflitos externos, que envolvem diferentes pontos de vista, pode florescer melhor na terceira.
É interessante perceber também que a decisão pela primeira ou terceira pessoa não precisa ser definitiva. Alguns autores optam por mesclar, alternando vozes narrativas, ou até por brincar com as expectativas do leitor, revelando, mais tarde, que o narrador não era exatamente quem parecia ser. Essa flexibilidade mostra que a literatura é menos sobre regras fixas e mais sobre possibilidades. O importante é que a escolha não seja apenas estética, mas orgânica ao enredo.
Uma armadilha comum é acreditar que escrever em primeira pessoa é mais fácil. À primeira vista, pode parecer que basta “falar como o personagem falaria”. Mas na prática, é preciso construir uma voz consistente, única, que não se confunda com a do próprio autor. O narrador em primeira pessoa deve ter seus próprios maneirismos, visões de mundo, limitações de linguagem. Se todos os personagens soam iguais, a ilusão se quebra. Já na terceira pessoa, a armadilha é outra: cair na tentação de contar demais, de transformar a narrativa em uma sucessão de explicações ao invés de ações e emoções vividas.
É curioso pensar que, no fundo, ambas as perspectivas lidam com um mesmo dilema: até que ponto o escritor deve controlar a informação? Em primeira pessoa, a limitação é natural, já que só se mostra aquilo que o narrador sabe. Em terceira pessoa, o escritor precisa se impor limites para não oferecer ao leitor um excesso de onisciência. Em ambas, a arte está em sugerir, em deixar lacunas que o leitor completa com a própria imaginação.
A experiência de leitura também muda bastante dependendo da escolha. A primeira pessoa gera empatia imediata, uma conexão quase inevitável com quem narra. Já a terceira pessoa pode oferecer uma compreensão mais ampla do enredo, mas às vezes com menos intensidade emocional direta. Cabe ao autor decidir o que deseja provocar: proximidade ou abrangência, intensidade ou amplitude, subjetividade ou objetividade. Nenhuma escolha é neutra, porque cada uma molda o ritmo, a voz e até o impacto final da história.
O mais fascinante é que não existe resposta definitiva, porque cada história pede sua própria roupagem. Talvez seja essa a maior liberdade e também a maior responsabilidade do escritor: perceber que narrar não é apenas contar, mas escolher como contar. E cada escolha abre portas diferentes, caminhos que transformam a obra em algo único. No fim, escrever é também um exercício de ouvir a própria história e descobrir em qual voz ela deseja nascer.