A cultura não se constrói apenas com datas históricas ou teorias científicas; ela se constrói com a compreensão da condição humana, com empatia, sensibilidade e capacidade de questionar valores e ideias.
A leitura é muitas vezes considerada o reflexo do intelecto, do gosto e da cultura de uma pessoa. Porém, entre leitores, críticos e formadores de opinião, circula uma ideia que merece questionamento: a de que ler ficção seria, de alguma forma, menos válido do que ler não-ficção. Existe um certo elitismo literário que desvaloriza romances, contos, literatura fantástica e narrativas imaginativas, como se elas fossem supérfluas diante de ensaios, biografias, textos acadêmicos ou tratados históricos. Esse preconceito sugere que apenas quem lê textos “sérios” estaria realmente cultivando sua inteligência e se tornando uma pessoa culta. Mas essa é uma visão limitada e que ignora o poder transformador da ficção.
É inegável que a não-ficção oferece informações concretas sobre o mundo: acontecimentos históricos, descobertas científicas, teorias filosóficas, análises sociais. No entanto, a ideia de que apenas esse tipo de leitura forma cultura ignora que a ficção também educa — embora de maneiras diferentes. Ela desenvolve a empatia, amplia a compreensão das motivações humanas, fortalece o pensamento crítico e nos ensina a lidar com ambiguidades e dilemas morais. Um romance como “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, não apenas entretém; ele leva o leitor a refletir sobre culpa, justiça e redenção. Uma obra de ficção histórica pode despertar interesse por períodos passados, motivando o leitor a buscar conhecimento factual posteriormente. Desmerecer a ficção como se fosse superficial é ignorar o impacto profundo que ela exerce sobre a mente e a sensibilidade humanas.
O elitismo literário se manifesta de diversas formas. Em conversas, leituras compartilhadas ou críticas online, é comum ouvir comentários como: “Ficção é apenas entretenimento, não te ensina nada de real”, ou ainda, “Se você quer ser culto, precisa ler ensaios, livros de história ou filosofia.” Esse tipo de julgamento ignora a complexidade da cultura e o fato de que ser culto não significa apenas acumular fatos, mas compreender e interpretar o mundo. A leitura de ficção desenvolve habilidades de interpretação, análise crítica de comportamentos, entendimento de contextos sociais e construção de repertório simbólico. É um treinamento contínuo da mente, que permite que leitores compreendam nuances, ironias, subtextos e dilemas que a realidade pura, apresentada em textos de não-ficção, muitas vezes não consegue transmitir com tanta intensidade.
Além disso, o elitismo literário tende a reforçar uma visão restrita de cultura, confundindo quantidade de conhecimento factual com profundidade intelectual. Ele cria uma espécie de “código moral literário”: se você não lê autores acadêmicos ou livros técnicos, estaria deixando de se formar como pessoa culta. Essa visão ignora a riqueza de experiências humanas que a ficção proporciona. Quando se lê um romance, um conto ou uma narrativa fantástica, está-se exercitando a imaginação, a interpretação de sentimentos complexos, a análise de relações humanas e sociais. A cultura não se constrói apenas com datas históricas ou teorias científicas; ela se constrói com a compreensão da condição humana, com empatia, sensibilidade e capacidade de questionar valores e ideias.
É interessante notar que muitas obras de ficção funcionam como pontes entre emoção e conhecimento. Um romance histórico, por exemplo, apresenta fatos e contextos através da perspectiva de personagens, tornando-os acessíveis e memoráveis. A experiência vivida pelos protagonistas transforma-se em aprendizado tácito, que muitas vezes permanece mais profundamente no leitor do que um tratado seco de história. Da mesma forma, narrativas de ficção científica ou distopia podem antecipar debates sobre tecnologia, ética e sociedade, instigando reflexão crítica sobre temas atuais. A ficção, portanto, não é apenas entretenimento: é um laboratório de experiências humanas, um espaço seguro para explorar ideias, dilemas e emoções que contribuem para a formação cultural do indivíduo.
Quando se afirma que apenas a leitura de não-ficção leva à erudição, muitas vezes se ignora também o impacto da narrativa na memória e na aprendizagem. Estudos de psicologia da leitura indicam que histórias envolventes facilitam a retenção de informações e a capacidade de conectar conceitos abstratos a situações concretas. Um leitor que acompanha personagens enfrentando dilemas éticos ou crises sociais internaliza valores, padrões de comportamento e contexto cultural de forma mais natural do que alguém que apenas lê listas de fatos ou análises acadêmicas. Desmerecer a ficção é, portanto, desconsiderar o poder que a narrativa tem de formar pessoas cultas, conscientes e empáticas.
Ao mesmo tempo, a não-ficção cumpre funções complementares e essenciais. Livros de história, ciência, filosofia, economia e política fornecem ferramentas para compreender o mundo real, interpretar eventos, formular argumentos sólidos e dialogar com base em conhecimento factual. No entanto, a não-ficção, quando lida isoladamente, não desenvolve da mesma maneira a sensibilidade emocional e a capacidade de imaginar experiências alheias. Um equilíbrio entre ficção e não-ficção, portanto, é o ideal para qualquer leitor que deseje construir cultura de forma completa, mas não porque a ficção seja inferior; ela apenas cumpre papéis distintos, igualmente importantes.
O elitismo literário que desvaloriza a ficção também ignora a história de grandes escritores que transformaram a narrativa inventada em instrumentos de reflexão profunda. William Faulkner, Toni Morrison, José Saramago, Clarice Lispector, entre outros, criaram obras que não apenas exploram a linguagem e a imaginação, mas também questionam estruturas sociais, políticas e éticas. A leitura dessas obras proporciona ferramentas intelectuais e emocionais para compreender o mundo, desafiar preconceitos e desenvolver senso crítico. Portanto, a ideia de que a ficção seria supérflua é, além de equivocada, uma simplificação perigosa que reduz o valor da cultura literária.
Além disso, essa visão elitista cria barreiras para o desenvolvimento da própria leitura. Quando se impõe que a ficção é “menos importante”, leitores em potencial podem se sentir desmotivados a explorar romances, contos ou literatura fantástica, perdendo oportunidades de desenvolver habilidades cognitivas e emocionais essenciais. A cultura, afinal, não é medida por listas de livros de não-ficção lidos, mas pela capacidade de interpretar, sentir e compreender o mundo em múltiplas dimensões. A leitura ficcional é uma das maneiras mais eficazes de alcançar essa compreensão, oferecendo experiências que nenhum manual ou ensaio seria capaz de proporcionar com a mesma profundidade e riqueza.
Em síntese, desmerecer a ficção em favor da não-ficção é uma forma de elitismo literário que não leva em conta a pluralidade da cultura. Ler romances, contos, narrativas históricas ou literatura fantástica não é apenas válido: é essencial para formar uma pessoa culta, empática e crítica. A leitura de não-ficção complementa esse aprendizado, oferecendo ferramentas de análise objetiva e conhecimento factual, mas jamais deve ser apresentada como superior à leitura de ficção. A verdadeira cultura se constrói no equilíbrio, reconhecendo o valor de cada tipo de leitura e o papel que ela desempenha na formação integral do indivíduo.
Portanto, qualquer pessoa que ama ler e mergulha na ficção não deve se sentir inferior ou menos culta por não dedicar seu tempo exclusivamente a textos de não-ficção. Pelo contrário, ela está exercitando habilidades cognitivas, emocionais e sociais que são parte fundamental da experiência humana e do repertório cultural. A ficção é, na verdade, uma forma sofisticada de conhecimento, que treina a mente e o coração para interpretar e compreender o mundo. O elitismo que insiste em reduzir romances e contos a mero entretenimento ignora essa dimensão essencial, transformando uma prática cultural valiosa em objeto de preconceito infundado.
Em última análise, ser culto não significa apenas acumular dados e fatos, mas compreender a complexidade da vida, das ideias e das emoções humanas. E para isso, a ficção é tão necessária quanto a não-ficção. Ela nos ensina a pensar, sentir e imaginar, preparando-nos para compreender não apenas o mundo real, mas também a diversidade de experiências que o compõem. Ao reconhecer o valor da ficção e desmistificar o elitismo literário, leitores de todos os tipos podem construir uma cultura rica, equilibrada e verdadeiramente profunda, capaz de formar mentes críticas, empáticas e curiosas.
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